Caía uma chuva fina, quase não molhando nada, a noite era um breu, mas crescera em meio aquelas árvores e sabia o caminho. O cavalo já estava encilhado e relinchava, chamando pelo dono. “Arrê, crioulo fresco! Não gosta de chuva?”. O animal apenas baixou a cabeça. Largou o instrumento no chão e, sem tirar os olhos dele, pôs o chapéu de barbicacho e vestiu o capote. Abraçou-se novamente ao seu tesouro mais precioso, montou e, a trote largo, sumiu na escuridão.
Já galopava há quase duas horas, a chuva parara, o companheiro de quatro patas conhecia bem aquela região. Amarrou as rédeas na cela e puxou o instrumento de debaixo do capote. O cavalo agora ia num trote lento, gostoso, o que faltava ali era uma trilha sonora para aquela noite fria. Foi justamente isso que ele prontificou-se em arranjar. Começou a tocar, estava meio desafinado, mas até a ocasião precisa estaria perfeito. Aprendera com o pai que era caçador, músico nas horas vagas. A melodia, de Vicente Celestino, expressava exatamente o contrário daquela noite sem estrelas.
Enquanto tocava, lembrava-se do pai, da choupana, dos animais e da vez que fora a cidade, claro. A cidade não lhe saia da cabeça. Três dias de viagem a cavalo, mas valeram a pena. O pai não queria levá-lo, mas ele insistira e acabara convencendo-o. Era maravilhosa, algo que nunca vira antes, cheia de ruas e casas e pessoas. Uma pessoa em especial. Fora amor à primeira vista: linda, cabelos loiros, olhos verdes e vestido azul. Saía da missa de domingo e no momento em que a viu os sinos tocaram em seu coração.
O pai percebeu. “Nem tente. Tu és bicho do mato, guri; ela, dondoca da cidade”.
Instalaram-se numa pousada antiga. A dona era simpática, mas tinha um jeito de chinoca dada. O pai avisara que estaria no bolicho e voltaria tarde. Não conhecia a cidade e no outro dia, antes do raiar do Sol iriam embora. Decidiu pular a janela e passear um pouco. Caminhava e deslumbrava-se com tudo que via: sobrados requintados, o banco, a delegacia, dois ou três automóveis que já chegaram àquela cidade, que não era muito grande, mas para ele era enorme.
Chegando-se a janela de umas das casas qual não fora sua surpresa, justamente a casa da moça. Sentada no chão da sala ela brincava com uma boneca enquanto escutava música. “Sabe, Maria, adoro violino! O som é bom” dizia à amiga de pano. Um homem entrou. Quando ela o viu, baixou a cabeça e se encolheu onde estava. O homem aproximou-se dela, acariciando-lhe os cabelos. Levantou-a e começou a subir seu vestido. Ela estava quieta, não relutava, mas em seu rosto uma expressão de medo, dor e asco delatava que não era a primeira vez que aquilo acontecia. Não conseguiu ficar ali olhando.
Voltou para a pousada, entrou pela janela, deitou-se na cama e chorou. Chorou a noite inteira. De manhã cedinho ele e o pai partiram. Nos anos que se passaram dedicou-se inteiramente ao instrumento. Logo o pai morreu, dos animais só restou o fiel amigo equino. Tempos depois soubera por um viajante, que passava meio perdido por ali, que uma senhora loira e de olhos verdes estava muito doente, à beira da morte e ele, o viajante, estava indo avisar os familiares do outro lado da mata.
Agora, montado em seu cavalo e afinando o instrumento, ele dirigia-se a cidade. Tocaria violino no enterro de sua amada.