segunda-feira, 15 de junho de 2009

JUÍZO

Rio de Janeiro, sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999.

A temperatura no apartamento de Beth é de 32 graus. Beth fecha a mala, desliga a geladeira, põe água na planta, apaga a luz e abre a porta. Ela está atrasada para pegar o ônibus. Beth ainda não sabe que o telefone vai tocar. O telefone toca.

— Cacete!

Beth olha o relógio. O telefone toca. Ela larga a mala no chão, acende a luz, o telefone toca, ela deixa a porta aberta, com a chave na porta, atende o telefone.

— Josimar? (...) Sou eu, Josimar, eu não tenho secretária eletrônica. (...) Eu sei. O que foi? (...) Estou saindo, não saí ainda. O que foi, Josimar?

Beth vê o livro Sequestrados de Altona, do Sartre, sobre a mesa, ao lado do computador. Pega o livro e põe no bolso.

— E você não salvou no disquete? (...) Tem, tem jeito sim, o computador pode ter salvo. (...) É, é brabo. (...) Josimar, faltam duas horas para acabar o milênio e você quer que eu lhe ensine, por telefone, a mexer no computador? (...) A responsabilidade pe sua, Josimar. Você assumiu, agora a responsabilidade é sua. (...) Josimar, eu não posso ser responsável pelos atos de toda a humanidade. A responsabilidade é sua. (...) Tá, Josimar, tá bom. Que saco!

Beth senta, liga o computador.

— Você ganha o mesmo que eu e entrou não faz nem um mês. Se eu perder o ônibus por sua causa e passar o Ano Novo na rodoviária eu te mato! Você está na frente do computador? (...) Bom, no canto esquerdo, embaixo, tem uma cruzinha, perto do Iniciar. Clique duas vezes com o botão direito do mouse na cruzinha. Vai aparecer uma ampulheta, aquela coisinha que mede o tempo, com areia dentro. Sabe como é? Um desenho de uma ampulheta. (...) Você está vendo a cruzinha no canto esquerdo? (...) Josimar, liga o computador.

Beth, na rua, mala na mão, procura um táxi. Fogos de artifício explodem no céu. Um relógio de rua marca 11:43, mas na verdade são onze e quarenta e cinco, o relógio está atrasado. Ela gesticula e grita para um táxi que passa, sem parar. Ela vê outro táxi se aproximando no sentindo contrário da rua. Beth atravessa a rua correndo, quase na frente de um ônibus. Outro ônibus buzina e pisca luz alta para ela. Ela se vira e vê o ônibus se aproximar. O ônibus freia e buzina. Beth grita. Fogos de artifício explodem no céu refletido no vidro do ônibus. Destino: Juiz de Fora. Beth é atropelada e morre.

Beth está estatelada no chão. Abre os olhos. Fogos de artifício emolduram um grupo de pessoas em círculo, romanos, monges, budistas, um índio. Surge um anjo. O anjo examina o rosto de Beth e pergunta:

— A senhora é uma galinha?

— Não.

O anjo confere uma ficha.

— Uma ameba?

— Não.

— Não vai dizer que a senhora é uma pessoa humana?

— Sou.

— Então vamos logo! Venha comigo.

Beth levanta, segue o anjo por um grande corredor. Ela examina as mãos, Abre a bolsa, pega um espelho.

— Mas o que aconteceu que eu estou tão pálida?

— A senhora morreu.

— Eu morri?

— E o pior é que está atrasadíssima. Os humanos entram em dois minutos. Venha comigo.

— Eu morri. Que absurdo! Nunca imaginei que isso fosse acontecer logo comigo. Eu perdi a passagem do milênio. Como foi a passagem do milênio?

— Ah, foi uma maravilha. O mar se abriu, bolas de fogo... Os Cavaleiros do Apocalipse então, que beleza. Gostei mais da peste, toda verde.

— O mundo acabou?

— Você não sabia?

­— Não, eu morri um pouco antes.

— Todo mundo avisou, o Pacco Rebane, Nostradamus. Olha aqui.

O anjo tira um livro do bolso e lê:

— “Quando a terceira esfera azul brilhar no mar do norte, então será o dia.” Só não entendeu quem não quis.

— Todo mundo morreu à meia-noite?

— Não, você morreu um pouco antes. E mesmo assim é a mais atrasada. Já vai começar.

— Começar o quê?

— Como assim, o quê?

O anjo empurra uma porta e Beth entra num grande auditório, lotado. Na platéia, seres humanos de várias épocas, princesas medievais, gregos de lençol, primatas peludos. No palco, entre nuvens, um luminoso informe o nome do show: “Juízo Final”. O anjo indica a Beth um lugar vago no auditório e sobe no palco, pega um microfone.

— Bem-vindos ao Juízo Final. Boa noite, ou bom dia, não importa: vocês agora vivem na eternidade. Está começando mais um sensacional julgamento, chegou a hora de prestar contas de tudo que se fez e tudo que se deixou de fazer. E o julgamento de hoje é...

O anjo examina uma ficha.

— Dos humanos!

Platéia vibra, aplaude, grita: Humanos! Humanos!

— Muito bem... A platéia está animada hoje. E agora vamos receber nosso juiz e patrocinados, Aquele que tudo vê e tudo sabe, Aquele que é o princípio, o fim e o meio. Uma salva de palmas para... Deus!

Um grande olho irradiando luz num triângulo surge sobre o palco. Acordes de um órgão. Palmas da platéia: De-eus! De-eus!

— É, podem aplaudir bastante, mas não pensem que isso vai influenciar o julgamento, não... Nosso juiz é implacável! Mas vamos ver quem será o representante da raça humana no Juízo Final.

O anjo mete a mão numa grande urna transparente, cheia de pequenos envelopes coloridos. Ele pega um envelope, abre.

— Vamos abrir o envelope... Atenção... dona Elisabeth!

Foco de luz em Beth, na platéia. Aplausos. Elisabeth! Elisabeth!

— Eu?

O anjo vem até a platéia e conduz Beth para o palco.

— É uma grande responsabilidade, representar a raça humana no Juízo Final... Etá nervosa, dona Elisabeth?

— Um pouco... pode me chamar de Beth.

— Beth, muito bem. Sabe como são as regras do jogo?

— Não, não sei nada. Eu estava indo para a praia. Eu acho que não estou preparada.

— Modéstia sua. A senhora sabe por exemplo em qual dinastia foi construída a muralha da China?

— Não sei, não tenho a mínima ideia.

— Brincadeira, isso não vale ponto. Fique calma, dona Beth.

No cenário surgem dois placares, Céu e Inferno, com um contador embaixo e uma ampulheta que marca o tempo.

— Dona Beth, as regras aqui são muito simples. Deus não faz distinção entre os seres que criou: amebas, árvores, baratas e seres humanos, todos têm a mesma importância. Como Deus não pode julgar individualmente todos os seres, escolhe, aleatoriamente, um representante de cada espécie. E a senhora foi escolhida para representar a raça humana.

— Olha, eu vi um japonês de óculos ali no fundo, será que não seria melhor... É que eu trabalho, trabalhava, numa empresa de informática, eu tenho só um curso técnico...

— Não se preocupe, a platéia ajuda, a senhora vai se sair bem... Eu vou lembrar tudo que a raça humana fez de ruim e a senhora vai dizer o que fizeram de bom. Deus vai dando os pontos que aparecem naquele placar. Se a senhora fizer mais pontos que eu, sabe para onde vocês vão?

A platéia grita: Para o Céu! Para o Céu!

— Exatamente. Para o Céu! Um lugar maravilhoso, onde corre o leite e o mel, para quem gosta de leite e mel. Um lugar onde não há dor, nem mal, nem pecado. Uma eternidade de gloria e felicidade!

A platéia grita: Para o Céu! Para o Céu!

— É, mas se a senhora perder...

Muda a luz e a música.

— Se a senhora perder, a situação da raça humana fica muito difícil, dona Beth... Se a senhora perder, os humanos vão passar a eternidade... no Inferno!

A platéia geme: uuuh!

— O Inferno é um péssimo lugar para se passar um fim de semana, que dirá uma eternidade.

A ampulheta do cenário vira e começa a contar o tempo.

— Olha lá, hein, dona Beth, que o relógio já está marcando e... começou o jogo!

— Eu não sei, quero dizer, a raça humana fez muitas coisas, algumas boas, outras ruins.

O anjo abre um envelope com várias fichas.

— Lembre das boas, dona Beth, que das ruins lembro eu. Olha, e pelo que eu estou vendo aqui... hoje o jogo está fácil para mim. A raça humana não fez um papel muito bonito, não. Raça humana... Vocês surgiram no finzinho do mundo, não faz nem dez milhões de anos, mas fizeram um estrago danado no planeta, hein, dona Beth? Os humanos merecem o Inferno! Que raça bem triste... A começar pelas guerras, que coisa feia! Nunca houve guerras entre camelos, nunca se ouviu falar de um bando de cotias matando outras cotias. Acho que as guerras vão levar vocês para o Inferno...

Placar do Inferno marca 100.000 pontos.

— É verdade, mas nós fizemos muita coisa boa também.

— Por exemplo?

— Bom... O quindim.

— Quindim.

— É, um doce. Foi uma grande invenção. Eu adoro quindim.

— Vamos ver quantos pontos vale o quindim.

Placar do Céu marca 3 pontos.

— Só três pontos, dona Beth. Além do quindim, o que mais vocês fizeram de bom?

— Pudim, rapadura, doce de leite.

Placar do Céu avança para 12 pontos.

— Dona Beth, a senhora vai ter que lembrar de muitos doces para tirar a raça humana do Inferno. Os humanos foram uma praga!

— E a roda? A roda é uma invenção ótima.

Placar do Céu avança para 512 pontos.

— A Beth está pegando o jeito.

— Livros! Os livros!

Placar avança para 20.512 pontos. Platéia vibra: Livros! Livros!

— Acho bom eu não me descuidar... Vamos ver... Inveja, cobiça, ira, gula, avareza, luxúria...

O placar do Inferno anda aos pulos, já está em 160.000.

— Está faltando um pecado...

— Preguiça?

Placar do Inferno pula para 170.000. Beth e a platéia gemem: ai!

— Preguiça. Obrigado, dona Beth, a senhora me deu 10.000 pontos.

— Só um pouquinho. As pirâmides. Fio dental. Anestesia. Elevador. A agricultura. Roupas. Sapato. Rádio, televisão. Cinema. Teatro.

Beth aponta para Deus.

— Aquela capela, que tem o desenho Dele pondo o dedo num homem assim, uma que foi restaurada há pouco... Cristina?

A platéia assopra: Sistina!

— Isso! Capela Sistina!

O placar do Céu vai para 86.512 pontos. O anjo consulta suas fichas.

— E as drogas? E a pornografia infantil? E a má distribuição de renda? E os corruptos?

Inferno: 245.560.

— Cadeiras. Tapetes. A Nona Sinfonia do Beethoven! A oitava, a sétima, a quinta, quarta, terceira, segunda e primeira sinfonias de Beethoven?

Céu: 112.320.

— A décima sinfonia?

Luz vermelha pisca, toca alarme.

— Não tem décima sinfonia nenhuma, nosso juiz tudo sabe e tudo vê, dona Beth. E as mentiras? A fofoca?

Inferno: 276.840.

— A música! Todas as músicas!

Céu: 280.320. A platéia vibra: Música! Música!

— O ciúme. A ganância.

Inferno: 310.630.

— Ganância é o mesmo que cobiça e avareza, já foi. Eu já falei pudim?

— Já falou, lá no começo, logo depois do quindim.

— Computador. Videocassete. As pinturas. As conquistas espaciais. Todos os eletrodomésticos.

Céu: 290.780.

— Roubos!

— Zíper! Telefone!

— Linha ocupada.

Inferno: 340.020.

— Cartões de Natal. Internet.

E um sem-fim de misérias e bondades humanas desfilou frente aos olhos que tudo vêem. O tempo, todos os tempos, chega ao fim. O placar do Inferno marca 834.760. O placar do Céu marca 834.730. Beth está nervosa, a platéia está nervosa.

— O tempo está acabando, faltam três minutos, dona Beth... Faltam trinca pontos para livrar a raça humana do Inferno, dona Beth.

— Eu já falei lâmpada?

— Falou.

— Quindim?

— Foi a primeira coisa que a senhora disse.

Silêncio. A platéia está apreensiva, rói as unhas. Beth pega um lenço no bolso, seca o suor da testa e, ao guardar o lenço, percebe o livro de Sartre em seu bolso. Pega o livro. Lê.

— Olha isso aqui. “Vós que desconheceis as nossas dores, como podereis compreender o poder atroz de nossos amores mortais? Crianças lindas que saís de nós, nossas dores vos terão feito. Séculos que virão, eis pois o meu século. Solitário e disforme, o réu. Eu responderei por ele.”

A platéia se emociona, aplaude. O placar do Céu pula para 834.765 pontos. A platéia vibra: Humanos! Humanos! Beth está radiante.

— Isso é do Sartre!

— Um ateu?

Silêncio. O placar do Céu cai para 834.760, empatando com o do Inferno. A platéia geme.

— Eu não sabia que ele era ateu. Eu nem li o livro todo, só essa parte, que estava sublinhada. O que acontece se der empate?

— Em caso de empate, a raça humana vai para o Purgatório, onde aguardará novo julgamento, em um milhão de anos.

— Como é o Purgatório?

— É um pouco como uma sala de espera, com gravuras na parece, revistas sem capa, plantas artificiais música ambiente.

— Que tipo de música?

— New age.

— Cacete!

— Falta cinquenta segundos! Eu também não lembro mais nada de ruim... Acho que vocês vão todos para o Purgatório.

— Eu falei no abridor de lata?

— Falou.

— Fita durex?

— Falou. Faltam quarenta segundos. Olha o tempo!

— Bem... Tem uma coisa que eu fiz, mas não sei se isso vale. Vale bondade com raiva?

— Faltam trinta segundos!

A platéia grita: fala!

— Bom... O Josimar, um cara que trabalha comigo no escritório, não bem comigo, eu trabalho na contabilidade e ele no contas a pagar.

— Dez segundos!

A platéia urra: fala!

— Eu ajudei o Josimar com o computador. Eu estava atrasada pra pegar o ônibus, mas atendi o telefone e ajudei o Josimar no computador. E a responsabilidade era dele. Ele ganha o mesmo que eu. Isso vale?

Silêncio. Expectativa da platéia. Beth olha para Deus. O placar do Céu avança um ponto: 834.761. Termina o tempo. Abre-se a porta do Céu, tocam trombetas!

— É o Céu! Sensacional! A raça humana vai para o céu por um ponto! Parabéns, dona Beth!

A platéia delira, todos se abraçam. A torcida invade o palco, cantando: Olé, olá, a raça humana ta botando pra quebrar! Humanos! Humanos! Beth é carregada em triunfo, nos ombros de um viking. A platéia canta: Arcanjo! Arcanjo! Arcanjo e Querubim! Arruma outro anjo que este já chegou ao fim!

— Não percam na próxima semana, o julgamento das amebas.

A platéia canta: Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos que as amebas vão pra puta que o pariu!!!

Jorge Furtado


6 comentários:

  1. É, se todos fossem como a dona Beth.,

    Garanto que poucos ajudariam o Josimar.

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  2. Tu devia ter separado em dois posts e postado um em cada dia... post mega grande -.- ms ah historia eh tri, msmo pq, tu jah tinha lido ela p mim neh xD

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  3. AMEBAS AMEBAS AMEBAS AMEBAS! \õ/\õ/\õ/

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  4. AMEBAS, AMEBAS, AMEBAS /wê
    ADOREI o post :B

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  5. quando eu tiver tempo eu leio xD

    aaatriii ;p

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  6. Gosto muito desse conto! Meio Woody Allen... Delicioso!

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